Nas minhas tarefas na casa de meus pais, não tinha trocado não. Fazer parte da casa, já era o pagamento das minhas obrigações. Mas na casa da minha tia, como não fazia parte dos membros dela, podia encarnar a faxineira e ganhar meus trocados. Entre meus dez e doze anos, saía cedo da minha casa, pegava o bonde e ia, toda importante, lavar as janelas e portas da casa dela. Ganhava o suficiente para na volta parar na lojinha e comprar lindas roupas para as minhas bonecas Susi. Torrava tudo e ficava lisa, mas sentia-me feliz, importante e independente.
Encarava essas tarefas como algo muito saudável e necessário para o meu desenvolvimento, mas hoje em dia está difícil. Virou um oito ou oitenta. As crianças da classe média de hoje, não aceitam fazer nada. Nem lavam seus pratos, nem arrumam as próprias camas e nem guardam suas roupas. E quando a gente solicita uma ajuda, respondem que criança não é escrava. As crianças da classe pobre fazem de tudo. Desde trabalhar na roça, nas usinas, nas olarias, quebrando pedras ou pedindo esmolas nos sinais das cidades grandes. E quando a gente diz para ela ir brincar, respondem que têm que trabalhar para levar dinheiro para casa.
(…) “- Criança foi feita para estudar e brincar – afirmou André enrolado no lençol.
– Eu não consigo me ver cortando cana. Não iria aguentar – comentou Pedro deitado na cama.
– Vai ver que no tempo de vocês não vai ter mais criança trabalhando – desejou Bibi, estirada nos pés da cama de Pedro.
– Não sei, não. Eu acho que vi um programa na televisão bem mostrando umas crianças trabalhando e o pior é que elas nem iam pra escola. Trabalhavam o dia todo – comentou Pedro.” (…)
Um pouquinho mais desse assunto se encontra no trecho do livro A REBECA DO SALU que escrevi no ano de 1999. Foi a maneira que encontrei para dar a minha pequena contribuição no alerta para essa grande questão. Muitas crianças por este Brasil grandão já leram o livro e quem sabe fincou no coraçãozinho de alguns uma pequena semente da importância deste fato, promovendo o despertar do mesmo interesse, preocupação e empenho que Kailash Satyarthi, ganhador do Premio Nobel da Paz, teve aos sete anos de idade ao ver um menino engraxate não poder frequentar a escola e ter que passar seus dias trabalhando.
Estou precisando, agora, escrever que o “nem oito nem oitenta” é muito legal. Que é gostoso perceber o alívio que a mãe sente quando recebe uma ajudinha com a louça do jantar; que é prazeroso ter todos os seus brinquedos arrumados quando seu amigo chega à casa dele para brincar; que lavar o carro do pai é massa e divertido; que arrumar as compras do mercado no armário vão contribuir com o tempo da mãe para o seu lanche ficar pronto logo e por aí vai.
Vamos lutar contra o trabalho escravo e abusivo de nossas crianças pobres, mas vamos também alertar aos pais das classes mais favorecidas que delegar tarefas aos filhos, envolvendo-os no andamento da casa de maneira criativa e prazerosa é oferecê-los a oportunidade de se disciplinarem e criarem independência.
Teresópolis, 16 de outubro de 2014.